3.3.3 Desafios e Dificuldades enfrentados durante o Ensino Remoto
3.3.3 Desafios e Dificuldades enfrentados durante o Ensino Remoto
Vários foram os desafios e dificuldades enfrentados por líderes escolares, professores e alunos no desenvolvimento do ERE durante a pandemia da Covid-19. A maioria dos estudos analisados abordaram as limitações do ERE. Apesar de algumas investigações não terem explicitado desafios ou dificuldades enfrentadas durante a realização das atividades remotas, foi possível inferir alguns óbices a partir da leitura dos seus textos (Drijvers et al., 2021; Santos et al., 2021; Souza & Vasconcelos, 2021). Grossi (2021), em seu estudo bibliográfico, não abordou nenhum desafio, possivelmente por seu objetivo ter sido apenas analisar o potencial educativo das TD utilizadas no ensino remoto.
A Tabela 4 apresenta resumidamente os principais óbices enfrentados pelos professores durante o ERE.
Tabela 4
Desafios e Dificuldades enfrentados no ERE
Desafios e Dificuldades enfrentados |
Total de Estudos |
Falta de acesso às tecnologias e/ou de preparo para seu uso técnico e pedagógico (professores, alunos e pais) |
23 |
Falta de apoio dos encarregados de educação/da família (por falta de acesso, preparo, tempo ou analfabetismo) |
10 |
Pouca/Falta de participação e de interação dos alunos nas aulas síncronas e atividades remotas |
10 |
Falta de atenção, interesse, concentração, motivação e de autonomia dos alunos para estudar na modalidade remota |
9 |
Sobrecarga de trabalho (gravando e editando videoaula, por não saber usar TD, atendendo alunos e pais e por questões burocráticas) |
7 |
Falta de interação presencial/distanciamento físico dos alunos |
4 |
Falta de local adequado para trabalhar/estudar (domestização do ensino) |
4 |
Incerteza sobre a efetividade da aprendizagem (comprometimento) |
4 |
Dificuldade de adaptar/preparar materiais para o formato remoto e de integrar as TD à prática pedagógica |
3 |
Falta de privacidade e/ou não separação entre horário de trabalho e de descanso, por parte dos pais e alunos |
3 |
Falta de tempo para se preparar e para realizar formações sobre TD |
3 |
Excesso de cobranças e pressão psicológica das escolas e órgãos oficiais |
3 |
Falta de políticas de formação de professores para atuarem com TD |
2 |
Falta/insuficiência de softwares assistivos para alunos com deficiência |
1 |
Dificuldade de se comunicar com as famílias |
1 |
Falta de suporte e de infraestrutura tecnológicos |
1 |
Uso de videoaulas longas demais |
1 |
Efeitos da pandemia na saúde física e mental dos envolvidos |
1 |
Dificuldade para avaliar a aprendizagem no formato remoto |
1 |
Produção de videoaulas |
1 |
Pouca importância dada pela família e alunos ao ensino remoto |
1 |
Falta de reconhecimento do trabalho do professor por parte dos pais |
1 |
Necessidade de rápida adaptação à dinâmica das aulas remotas e de aprendizagem dos recursos digitais |
1 |
Falta de planejamento e investimento para a transição do presencial para o remoto |
1 |
Medo de contágio por parte dos professores |
1 |
Falta de diversificação de TD para uso nas aulas remotas |
1 |
Insegurança/incerteza quanto à formação profissional por não saber manusear as TD |
1 |
Como se percebe, a exclusão digital dos professores, alunos e pais, materializada na falta de dispositivos tecnológicos, de acesso à internet e/ou de preparo para o uso técnico e pedagógico das tecnologias digitais, foi identificada em 23 dos 24 trabalhos como o principal ou um dos entraves enfrentados (Aguiar et al., 2020; Andrade et al., 2023; Cipriani et al., 2021; Costa, 2023; Dias-Trindade et al., 2020; Drijvers et al., 2021; Friedrich et al., 2021; Galizia et al., 2022; Godoi et al., 2021; Holanda et al., 2021; Hu et al., 2021; Lucas & Moita, 2020; Negrão & Neuenfeldt, 2022; Oliveira & Amancio, 2021; Oliveira et al., 2023; Rocha et al., 2020; Samartinho et al., 2020; Santos & Lacerda Júnior, 2022; Santos et al., 2021; Souza & Vasconcelos, 2021; Starks, 2022; Scully et al., 2021; Vaz et al., 2021).
A contradição entre a exclusão digital apresentada neste estudo e os resultados da pesquisa TIC Domicílios 2020 (CETIC.BR, 2021a), em que 81% da população brasileira possuíam acesso à internet em suas residências, pode ser provavelmente explicada pelo fato de que, em muitas residências, somente um dos pais possuía celular, que era dividido entre os filhos, o que impossibilitou a participação plena em todas as atividades remotas. Além disso, o acesso à internet dava-se, em geral, via dados móveis, com uma qualidade extremamente baixa (Aguiar et al., 2020; Samartinho et al., 2020).
As TD apresentam imponderáveis potencialidades para os processos ensino e aprendizagem. As mais-valias destes recursos verificam-se nas possibilidades de comunicação, interação e informação que os espaços virtuais híbridos e multimodais proporcionam, quer conectando pessoas, máquinas e conhecimento, via novas linguagens e convergência de recursos, quer potencializando o exercício da cidadania, por meio da autoria e da produção em/na rede. Agregando a isto a mobilidade e ubiquidade das tecnologias móveis, a sala de aula amplia-se para além do espaço físico como ambiente de aprendizagem mútua para professores e alunos (Moran, 2017).
Portanto, ficar excluído desses usos, como ocorreu durante o ERE na pandemia da Covid-19, é estar à parte destes benefícios. Este é, porém, um tipo de exclusão que não se restringe ao digital, vai bem além. A exclusão digital integra e, simultaneamente, intensifica a exclusão social. Isto porque a internet é, atualmente, o principal meio de informação e de efetivação da liberdade de expressão. Logo, quem dela é excluído, não acessa a informação que nela circula, não compartilha conteúdo nem participa das discussões que ali ocorrem. Em países como o Brasil, com um histórico secular de desigualdades sociais, a disparidade no acesso à rede somente aprofunda esse fosso social. Castells, em 2003, já afirmava que ficar excluído das redes é uma das formas mais danosas de exclusão no contexto econômico e cultural.
Dez estudos indicaram a falta de apoio dos pais ou da família, devido à falta de acesso e/ou de preparo para utilizar TD em contextos pedagógicos, à falta de tempo ou à inabilidade em ler e escrever (Cipriani et al., 2021; Costa, 2023; Dias-Trindade et al., 2020; Galizia et al., 2022; Godoi et al., 2021; Hu et al., 2021; Negrão & Neuenfeldt, 2022; Oliveira & Amancio, 2021; Samartinho et al., 2020; Santos & Lacerda Júnior, 2022; Vaz et al., 2021).
Para Dias-Trindade (2020), o desconhecimento de recursos educativos digitais e softwares, por professores, alunos e encarregados de educação, além da inexperiência desses sujeitos em trabalhar em ambientes digitais, podem explicar a falta de apoio dos encarregados de educação nas atividades dos filhos e a dificuldade dos professores em preparar materiais para uso remoto, desafio também relatado.
A menção ao despreparo dos alunos para o uso das TD com fins pedagógicos, embora saibam usar os artefatos tecnicamente (Holanda et al., 2021), foi algo curioso, porém esperado, já que alguns estudos analisaram as práticas remotas com TD em escolas do campo (Friedrich et al., 2021; Oliveira et al., 2023) ou em escolas urbanas com alunos advindos da zona rural (Oliveira & Amancio, 2021), cujas diferenças na desigualdade de acesso às TD em relação às urbanas foram aprofundadas ainda mais durante o ERE.
Nesta vertente, Friedrich et al. (2021) afirmam que, embora o uso de recursos digitais tenha se ampliado de forma global durante o ensino remoto, exigindo mudanças na organização dos sistemas de ensino em geral, o fomento de recursos e a acessibilidade digital para os campesinos ainda constituem enormes desafios.
A pouca ou falta de participação e de interação dos alunos nas aulas síncronas e atividades remotas também foi identificada em 10 dos artigos examinados (Andrade et al., 2023; Cipriani et al., 2021; Costa, 2023; Galizia et al., 2022; Hu et al., 2021; Lucas & Moita, 2020; Oliveira & Amancio, 2021; Santos et al., 2021; Scully et al., 2021; Vaz et al., 2021).
A falta de atenção, de interesse, concentração, motivação e de autonomia para estudar na modalidade remota, em razão da baixa faixa etária e da falta de apoio de alguns pais/encarregados de educação, foram outros desafios indicados em 9 dos estudos analisados (Andrade et al., 2023; Cipriani et al., 2021; Costa, 2023; Galizia et al., 2022; Lucas & Moita, 2020; Oliveira & Amancio, 2021; Samartinho et al., 2020; Scully et al., 2021; Vaz et al., 2021).
Sete estudos apontaram a sobrecarga de trabalho, em geral, por falta de preparo e formação para manusear as TD - o que exige mais tempo para realizar algumas tarefas para muitos inusitadas, como gravar e editar videoaulas -, pela necessidade de atender constantemente aos alunos e encarregados de educação e por questões burocráticas (Galizia et al., 2022; Lucas & Moita, 2020; Negrão & Neuenfeldt, 2022; Oliveira et al., 2023; Rocha et al., 2020; Santos & Lacerda Júnior, 2022; Vaz et al., 2021).
A falta de interação presencial ou o distanciamento físico dos alunos (Andrade et al., 2023; Dias-Trindade et al., 2020; Friedrich et al., 2021; Godoi et al., 2021), a falta de local adequado para trabalhar/estudar, silencioso e sem distrações, devido à domestização do ensino e à ausência de um ambiente apropriado para professores e alunos participarem das aulas remotas (Cipriani et al., 2021; Costa, 2023; Galizia et al., 2022; Vaz et al., 2021) e a incerteza sobre a efetividade da aprendizagem (Costa, 2023; Hu et al., 2021; Santos & Lacerda Júnior, 2022; Scully et al., 2021) foram também mencionados como desafios vivenciados durante o ensino remoto.
Nas investigações, também foram relatados problemas como: dificuldade de adaptar e/ou preparar materiais para o formato remoto e integrar as TD à prática pedagógica (Andrade et al., 2023; Dias-Trindade et al., 2020; Godoi et al., 2021), falta de privacidade e/ou não separação entre horário de trabalho e de descanso, por parte dos pais e alunos (Cipriani et al., 2021; Negrão & Neuenfeldt, 2022; Oliveira & Amancio, 2021), já que o ambiente privado, doméstico, de professores e alunos se tornou sala de aula virtual, e falta de tempo para se preparar e para formações sobre TD (Aguiar et al., 2020; Cipriani et al., 2021; Starks, 2022) e o excesso de cobranças e pressão psicológica das escolas e órgãos oficiais (Lucas & Moita, 2020; Oliveira & Amancio, 2021; Santos & Lacerda Júnior, 2022).
A falta de políticas de formação de professores para atuarem com TD durante o ERE foi um ponto mencionado (Galizia et al., 2022; Santos et al., 2021), considerando o despreparo dos docentes para ministrarem aulas remotas. Santos & Lacerda Júnior (2022) acreditam que a necessidade do uso de TD no ERE trouxe a lume a fragilidade na oferta de programas de formação sobre TD, que deveriam ser vistos como algo ininterrupto e contínuo.
Alguns desafios foram identificados em apenas um estudo, notadamente pelos que investigaram em contextos mais específicos ou desafiadores (escola de campo, educação especial, educação infantil, pré-escola).
Starks (2022), que investigou as práticas de professores da educação especial, indicou a falta ou insuficiência de softwares adaptativos para alunos com deficiência, a dificuldade de se comunicar com as famílias e a falta de suporte e de infraestrutura tecnológicos.
Santos & Lacerda Júnior (2022), por sua vez, reportaram o medo de contágio dos professores, já que, durante as aulas remotas, tinham que se deslocar às casas dos alunos para entregar apostilas impressas, a falta de diversificação de TD para utilizar nas atividades remotas e a insegurança/incerteza dos professores quanto à formação profissional por não saberem manusear as TD.
Cipriani et al. (2021) mencionaram a falta de reconhecimento do trabalho do professor por parte dos pais e a necessidade de rápida adaptação à dinâmica das aulas remotas e de aprendizagem dos recursos digitais.
Vaz et al. (2021) destacou os efeitos da pandemia na saúde física e mental dos envolvidos e a dificuldade para avaliar a aprendizagem no formato remoto, tendo em vista a dificuldade de construir instrumentos avaliativos para essa nova modalidade.
Além destes, foram ainda apontados: uso de videoaulas longas demais, especialmente para alunos bem jovens que perdem o foco com facilidade (Costa, 2023), a pouca importância dada pela família e alunos ao ensino remoto (Lucas & Moita, 2020) e a falta de planejamento e investimento para essa transição do presencial para o remoto (Aguiar et al. 2020).
As investigações, realizadas em contextos e locais distintos, evidenciaram que os desafios enfrentados não impediram o desenvolvimento das aulas e atividades remotas, o que comprova a capacidade de reinvenção das escolas, educadores e estudantes.
Constatou-se, ainda, que a exclusão digital, concretizada na falta de acesso aos dispositivos e à internet e na falta de preparo para seu uso, constituiu o maior desafio para a efetivação e eficácia das aulas e atividades remotas no período da pandemia, o que faz emergir a necessidade de uma reflexão sobre o impacto das desigualdades no acesso às TD durante o ERE, a democratização deste acesso (Rocha et al., 2020; Cipriani et al., 2021) e a implementação de políticas de inclusão digital.
Lemos (2011) vem defendendo, há muitos anos, a inclusão digital a partir da formação global do indivíduo. Para ele, há dois tipos de inclusão digital: espontânea e induzida. A espontânea dá-se compulsoriamente, quando o indivíduo se vê forçado a utilizar tecnologias nas diversas situações do cotidiano (usar cartão de débito e crédito, fazer check in online em viagens aéreas etc.), como ocorreu agora na pandemia da Covid-19. A inclusão induzida, por sua vez, é planejada, resultante de “um trabalho educativo e de políticas públicas que visam dar oportunidades a uma grande parcela da população excluída do uso e dos benefícios da sociedade da informação” (Lemos, 2011, p. 16) e se efetiva via projetos de inclusão digital.
Neste viés, Castells (2002) definiu os usuários compulsórios das tecnologias, os espontaneamente incluídos, como “interagidos”, não “interagentes”, por fazerem um uso elementar das tecnologias, não usufruindo de todas as vantagens culturais, sociais e econômicas que elas oferecem. Por esta razão, Lemos (2011) advoga, para esses indivíduos, uma inclusão digital induzida que trabalhe uma dimensão cidadã e educacional, para que usem as tecnologias de modo a se inserir e participar ativamente na sociedade. Essa visão coaduna-se com os estudos analisados, que indicaram falta de preparo de alunos e professores para o uso das TD nas atividades remotas e, portanto, a necessidade de formação técnica e pedagógica neste sentido.
Logo, inclusão digital é mais do que o acesso a tecnologias ou capacitação técnica para usá-las, fato evidenciado na dificuldade de vários professores em integrar as TD à prática pedagógica, ainda que soubessem usá-las tecnicamente. Para Bonilla e Pretto (2011, p. 10), a inclusão digital pressupõe o acesso e a apropriação das tecnologias digitais pelos sujeitos sociais “como autores e produtores de ideias, conhecimentos, proposições e intervenções que provoquem efetivas transformações em seu contexto de vida”. Nessa visão, estar incluído é usar as tecnologias para além do seu aspecto instrumental, não só como receptor, mas de modo autoral, para produzir conhecimento e exercer a cidadania.
Nos estudos ora discutidos, dentre as tecnologias digitais, os dispositivos móveis constituíram um relevante fator de inclusão digital, particularmente o celular, já que foi o recurso mais utilizado por alunos e professores das escolas públicas brasileiras no acesso às aulas remotas, fato reforçado pela pesquisa TIC Domicílios 2020 (CETIC.BR, 2021a).